Blog

A correspondência de Jean Mermoz [Parte 1]

correspondências Jean Mermoz

Nessa sequencia de artigos, irei abordar sobre algumas correspondências escritas por Jean Mermoz! Não deixe de acompanhar para saber um pouco mais sobre a vida desse grande herói francês.

Ao pressentir que sua morte estava próxima, Madame Gabrielle Mermoz expressou seu último desejo: as cartas de Jean a ela enviadas deveriam ser enterradas consigo. Mangaby (de maman Gaby), como o aviador Jean Mermoz a chamava, queria repousar em sua última morada com aquelas relíquias, representação sagrada de seu único filho.

Aquele pacote de cartas, conservadas com tanto zelo e carinho, impregnadas da alma de tão especial remetente, foi, juntamente com as obras sociais a que ela se dedicou, cuidando de órfãos da aviação, um lenitivo para Mme. Mermoz durante os anos em que sobreviveu à perda de Jean.

Na condição de piloto do correio aéreo, no exercício da nobre missão de aproximar os homens, seu filho transportou cartas além de oceanos e de continentes. Mangaby, uma das personagens essenciais da vida de Jean Mermoz e sua principal correspondente, desejou levar as cartas dele em sua viagem derradeira.

O desejo de Mme. Mermoz foi satisfeito em 1955, no cemitério de Mainbressy, na região das Ardennes, França.  Cerca de dezenove anos antes, na manhã de 7 de dezembro de 1936, dois dias antes de festejar seus 35 anos de idade, quando sobrevoava o Atlântico Sul, seu filho desapareceu nas águas do oceano.

O “desbravador do céu”, um dos principais personagens dessa “gesta moderna” que é a história dos pioneiros da aviação postal francesa, conforme a definição de Joseph Kessel, havia partido de Dacar, na África Ocidental, pilotando o hidroavião Laté 300 Croix-du-Sud (Cruzeiro do Sul), em direção a Natal, Brasil. Com Mermoz desapareceu sua tripulação: o co-piloto Alexandre Pichodou, 31 anos, o mecânico Jean Lavidalie, 34 anos, o radiotelegrafista Edgar Cruveilher, 37 anos e o navegador Henri Ézan, 32 anos.

Sem a interferência do testamenteiro de Mme. Mermoz, Christian Melchior-Bonnet, amigo desse herói e mártir da aviação, aquelas páginas estariam perdidas para a História. Contudo, antes de obedecer ao desejo de tão amorosa mãe, possivelmente com sua aquiescência, ele fotografou ou copiou esses documentos. 

Melchior-Bonnet, um erudito, correspondente de Marcel Proust, com uma relevante folha de serviços na imprensa e na edição, foi redator-chefe do jornal em que Jean Mermoz colaborou com regularidade, Le Flambeau (O Archote), fundado pelo Coronel François de La Rocque, presidente-geral do Partido Social Francês, do qual o piloto foi vice-presidente.

Deve-se também a Melchior-Bonnet a reunião dos escritos de Mermoz que compõem a primeira edição do livro Mes vols (Meus voos), publicado em Paris, pela editora Flammarion, em 1937, com sucessivas reedições ao longo dos anos.

Graças à gentileza de Melchior-Bonnet e de Gilles de La Rocque, filho do Coronel de La Rocque e autor do prefácio de Mes vols, cartas, notas e documentos do “paladino do espaço” foram confiados ao pesquisador Bernard Marck, autor de obras como Il était une foi Mermoz (Era uma fé Mermoz) e Histoire de l’Aviation (História da Aviação), publicadas, respectivamente, em 1986 e 1997, reeditadas em 2001.

Ao longo da elaboração de sua Histoire de l’Aviation, Bernard Marck teve o privilégio de manter contato com alguns dos antigos companheiros d’O Grande, forma respeitosa como eles se referiam ao piloto, os quais lhe forneceram informações e documentos. A esses se vieram juntar novas cartas e documentos conservados por Jean Dabry, navegador por ocasião da primeira travessia do Atlântico Sul, a bordo do Laté 28-3 Comte-de-la Vaulx, (Conde de la Vaulx) em 12 de maio de 1930.

Nessa ocasião, Mermoz bateu o recorde mundial de distância, em voo direto, com duração de 21 horas e 15 minutos, em hidroavião, entre São Luís do Senegal e Natal. Também àqueles documentos, juntaram-se outros guardados por Gilbert Louis, afilhado de Mermoz, portanto muito próximo de Mme. Gabrielle Mermoz, e por Alexandre Couzinet, irmão de René Couzinet, o jovem construtor do Couzinet 70 Arc-en-Ciel (Arco-Íris), trimotor no qual Mermoz realizou, em 16 de janeiro de 1933, a primeira travessia do Atlântico Sul, em avião, entre Dacar, no Senegal e Natal, em 14 horas e 32 minutos. É interessante assinalar que o próprio René Couzinet integrou a tripulação desse voo.

Depoimentos, confidências e arquivos pessoais de outras figuras, direta ou indiretamente relacionadas com Mermoz, possibilitaram ao historiador Bernard Marck a reconstituição de sua carreira civil e militar, de sua família, de seus amigos e, em sentido mais amplo, de seu entorno e dos acontecimentos nos quais eles todos estiveram envolvidos.

Esse acervo, em que se destacam as preciosas cartas do piloto, guardadas por Christian Melchior-Bonnet durante mais de trinta anos, foi reunido e divulgado por Marck no livro Jean Mermoz: Défricheur du ciel. Correspondance 1923-1936 (Jean Mermoz: Desbravador do céu. Correspondência 1923-1936), publicado em 2001, pela editora L’Archipel, de Paris.

A obra, além da iconografia, da Introdução assinada por Bernard Marck, contém, para melhor compreensão do contexto em que as cartas foram escritas, um texto desse pesquisador precedendo cada conjunto desses documentos concernentes às várias fases da vida de Mermoz e, nos Anexos, uma cronologia e a síntese biográfica de seus principais correspondentes, de personalidades ligadas ao piloto e de outras apenas mencionadas nas cartas.

O livro de Bernard Marck resgata cento e setenta e oito documentos de Jean Mermoz. A maioria das cartas, cento e dezesseis, é endereçada a Mangaby; aos Gillet, seus avós maternos e pais adotivos, são destinadas trinta e sete; uma ao amigo Henri Fournier, piloto que deixou a aviação ainda muito jovem e se tornou operador da Bolsa de Valores de Paris; duas ao piloto René Jomelli; cinco ao engenheiro em aeronáutica e construtor de aviões René Couzinet; três ao piloto  Charles Louis, seu amigo e compadre; duas ao piloto Henri Guillaumet; uma ao presidente da Câmara de Comércio de Toulouse; uma ao aviador Vsevolod (Vova) Martinoff; duas ao engenheiro belga Paul Chaussette, encarregado de interesses de mineração na América do Sul; uma a Didier Daurat, Diretor de Exploração da Latécoère; uma ao jornalista Jacques Mortane, publicada no Excelsior ; uma a Georges Houard, do periódico Les Ailes (As Asas); um artigo para o jornal Le Flambeau; uma “Apresentação” de número especial da revista La Belle France; um discurso de agradecimento pelas homenagens recebidas por ocasião do  primeiro voo direto de São Luís do Senegal a Natal e, por fim, o Testamento de Jean Mermoz, lavrado em Natal, Rio Grande do Norte.

Bernard Marck ressalta que a edição por ele organizada, divulgando pela primeira vez a correspondência de Mermoz, embora abundante, não é completa. Em acervos particulares de colecionadores se encontram centenas de cartas, telegramas, cartões-postais de Jean Mermoz, avaliados em milhares de euros, como pude constatar em um site de venda em leilão de documentos históricos (http://postale.free.fr/plus/mermoz/malle/03/03-mermoz_vente_aux_encheres.htm).

Todavia, devo lembrar que em  Il était une foi Mermoz, publicado cinco anos antes de Défricheur du ciel, Marck cita trechos de cartas inexplicavelmente não-incluídas nesse volume, entre as quais uma escrita em Natal, onde amerrissara no rio Potengi nove dias antes, e endereçada à Mme. Mermoz, em 21-06-1930, com as impressões do aviador sobre a cidade, onde então estava retido por falta de ventos favoráveis para a decolagem do hidroavião Comte-de-La Vaulx

Nessa carta, escrita sob domínio da raiva, durante uma das pausas forçadas entre as cinquenta e três tentativas de decolagem, ele confessa a Mangaby ter chorado em razão de sua impotência, à espera de ventos propícios. E acrescenta:

Arrasto minha tristeza e minha inação nas ruas sujas e monótonas de Natal. Nenhum hotel. Sim, há um somente, repugnante, com quartos em que os telhados não tem forro, onde chove tanto quanto lá fora, camas cheias de pulgas, cupins que demolem as paredes… (MARCK, 1986, p. 247).

Essas cartas não-inseridas em Défricheur du ciel também são mencionadas por Joseph Kessel, em sua biografia do piloto, publicada em 1938.

Em seu livro Mermoz, Kessel, certamente apoiado em depoimento do biografado, de quem era amigo fraterno, assim descreve a vida dos pilotos naquela ocasião:

Dias em Natal tão longos, tão vazios e de uma ociosidade funesta para os nervos… A cidadezinha triste e pobre com suas ruas em terra batida e esburacadas, suas casas irregulares e sombrias, a implacável magnificência de sua vegetação, sua população negra[2] miserável, tinha um charme surdo, secreto, nostálgico. Mas para três homens impacientes por ação, loucos para partir, o ambiente era intolerável.

Um único hotel existia, então, em Natal. Os quartos com telhados sem forro, as pulgas fervilhavam nas camas, os cupins roíam as paredes. Mermoz e seus companheiros moravam em uma casa sem móveis, situada bastante longe da cidade. Lá eles armaram suas redes, fizeram trazer latas de querosene que eram utilizadas como assentos e mesas. Era todo o seu mobiliário.

Como bagagens apenas tinham a roupa do corpo. Mermoz mandou lavar seu terno marrom seis vezes. Ele nem pensava mais em sua higiene. Isso pouco lhe importava. Além do mais uma febre lhe tirou o apetite. Ele quase nem mais tocava a estranha comida, preparada por um boy brasileiro.

Os três homens arrastavam-se durante todo o dia, semidespidos, em sua casa sonora, falavam pouco, contemplavam displicentemente as buganvílias, as bananeiras que tremulavam no jardim sob o eterno vento sudeste. O mesmo vento da lagoa de Bonfim e que ia lhes ser favorável um dia. Mas, como esse dia estava longe…

Ao anoitecer, os três companheiros subiam em uma velha camioneta americana toda deteriorada e se dirigiam à cidade. Eles examinavam o hidroavião, sentavam-se à mesa de um café cheio de moscas. O farol dos Reis Magos, construído nas antigas ruínas de uma fortaleza portuguesa, se iluminava. Mermoz, Dabry e Gimié retornavam para seu jantar sórdido e suas redes.

A única distração de Mermoz era sua correspondência. A travessia do Atlântico lhe rendia cartas às centenas. Elas vinham de Aubenton, sua comuna natal, do Egito, da Alemanha, da Irlanda, de Toulouse, de San Francisco. Pediam-lhe selos postais, lembranças. Moças lhe suplicavam para levá-las em seu hidroavião. De Miami, ricas americanas telegrafavam-lhe oferecendo-lhe o coração e a fortuna.

Mas logo essas mensagens, por sua tolice e sua presunção, pelo desprezo que elas lhe suscitavam pela espécie humana, em vez de o distrair, o irritavam. Ele as rasgava sem ler.

E as palhas dos coqueiros balançavam ao vento sudeste e todas as noites o farol dos Reis Magos piscava… (Cf. KESSEL, Joseph. Mermoz. Paris, Hachette, [1966] p.217-218).

Devo assinalar que no dia seguinte à amerrissagem no rio Potengi, o Comte-de-La la-Vaulx foi deixado sob os cuidados de mecânicos e Mermoz, Dabry e Gimié partiram para Buenos Aires. Ao passarem pelo Recife, Mermoz fez uma visita à Mademoiselle Gilberte Chazottes, sua noiva, e em Montevidéu eles tiveram um encontro com Monsieur Marcel Bouilloux-Lafont, presidente do Conselho de Administração da Aéropostale.

Naquela cidade, em Buenos Aires e no Rio de Janeiro, no retorno a Natal, foram recebidos pelos governos do Uruguai, da Argentina e do Brasil. No Rio, Mermoz tomou o avião que transportava semanalmente as malas postais destinadas a embarcar em Natal a bordo de um dos avisos do tráfego semanal.

No dia 31 de maio eles estavam novamente em Natal e, logo no dia seguinte, Mermoz começou a testar o motor, desmontado durante sua ausência. O plano da tripulação do Comte-de-la-Vaulx era tentar, no dia 8 de junho de 1930, a primeira travessia no sentido Brasil-África, jamais empreendida. Até então, as decolagens, os voos e as amerrissagens tinham sido muito fáceis e o regime do motor era satisfatório.

O que eles não pressentiram foi a ausência dos ventos favoráveis à decolagem. Após 35 tentativas empreendidas em diferentes pontos do rio Potengi, no dia 11 de junho Mermoz decidiu tomar um avião e procurar uma bacia, um lago, de onde pudesse decolar. Pretendia ir até 250 quilômetros ao sul de Natal nessa busca.

A 50 quilômetros localizou a lagoa de Bonfim. Foi de lá que às 16h 30min do dia 8 de julho, depois de outras 18 tentativas, o Comte-de-la-Vaulx enfim decolou. Foram necessárias, portanto, 53 tentativas para que isso ocorresse[3].

Além da carta acima mencionada, Jean Mermoz escreveu quatro outras em Natal, todas para René Couzinet: em 4 e 13 de junho de 1934 e 29 de outubro de 1935. A quarta, embora o missivista não tenha explicitado o local, foi sem dúvida escrita em Natal, mas abordarei sobre a mesma no próximo artigo. Não perca!                                                                         


[1] Artigo publicado originalmente na Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, nº 49, out.-dez. 2016.Natal: Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, 2016.

[2] Talvez Kessel, sem conhecer Natal, tenha imaginado que a população da cidade fosse negra como no Senegal.

[3] Cf. MARCK, Bernard. Il était une foi Mermoz. Paris: Éditions Jean Picollet, 1986.

Gostou do conteúdo? Compartilhe!

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on telegram

Posts mais recentes: